quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Kadafi perde o controle sobre o Leste da Líbia

Roma (AE) - O poder do governante líbio Muamar Kadafi se enfraqueceu ainda ontem, em meio a relatos de que mais de mil pessoas foram mortas desde que começou a rebelião contra o regime, há mais de uma semana. Insurgentes já controlam todo o Leste da Líbia, onde desfilaram triunfantes pelas cidades de Benghazi e Tobruk, e ontem anunciaram a captura de Misurata, terceira maior cidade do país e já no oeste da Líbia, a 200 quilômetros da capital Tripoli. Em comunicado publicado pelo website da emissora de televisão Al-Jazira, do Catar, oficiais do exército líbio que comandam a guarnição de Misurata ofereceram “apoio total aos manifestantes”.

hussen malla aePortando armas de grosso calibre, opositores do governo realizam protesto na cidade de TrobukPortando armas de grosso calibre, opositores do governo realizam protesto na cidade de Trobuk
O chanceler da Itália, Franco Frattini, disse o número de mortos na rebelião popular contra Kadafi passa de mil. A Federação Internacional pelos Direitos Humanos informou um pouco antes das declarações de Frattini que pelo menos 640 pessoas foram mortas.

Segundo a Federação, que reúne 164 organizações não governamentais, já ocorreram 275 mortes em Trípoli e outras 230 em Benghazi, cidade no leste do país. O número foi divulgado pela chefe da Federação, Souhayr Belhassen, em entrevista à agência France Presse. Entre os mortos há “130 soldados que foram executados por seus oficiais em Benghazi por se recusarem a disparar nas multidões”, disse ela. Belhassen, que lidera a federação sediada em Paris, afirmou que o número de baixas é baseado em fontes militares para a capital, Trípoli, e em relatos de grupos pelos direitos humanos líbios para Benghazi e outros pontos do país. Na terça-feira, o governo de Kadafi admitiu 300 mortes nos protestos, incluindo 111 soldados.

Frattini afirmou que Kadafi perdeu o controle da região da Cirenaica, ou o Leste da Líbia, para os insurgentes. “A Cirenaica não está mais sob o controle do governo da Líbia e existem explosões de violência ao redor do país”, disse Frattini. O chanceler italiano também acusou Kadafi de praticar um “banho de sangue” contra a população.

Falando em uma reunião organizada pela Comunidade de Santo Egídio, uma organização católica em Roma, Frattini disse que ocorreram recentes proclamações na Cirenaica de que a região agora é um “emirado islâmico” e que foram feitos pedidos para que a região rompa as relações com o Ocidente.

Frattini se referia à cidade de Derna, que fica na Cirenaica, distante 1,2 mil quilômetros de Tripoli. Mais cedo, o vice-chanceler da Líbia, Khaled Khaim, disse a embaixadores europeus em Tripoli, ainda sob o controle de Kadafi, que um integrante da rede extremista Al-Qaeda, Abdelkarim al-Hasadi, ex-detento da prisão americana na Baía de Guantánamo (Cuba) havia tomado a cidade, onde impôs a Sharia (lei islâmica). Moradores da cidade, contudo, negaram essa versão do governo de Kadafi. Segundo eles, Derna é controlada pela oposição e não por islamitas e as declarações do vice-chanceler de Kadafi foram feitas para “amedrontar a Europa”. Manifestantes em Benghazi, bem como em frente a embaixadas da Líbia nas capitais europeias, foram fotografados carregando a antiga bandeira da monarquia da Líbia, usada antes do golpe de 1969, quando Kadafi tomou o poder, e não bandeiras islamitas, as quais são negras ou verdes e trazem versos do Alcorão.

Soldados leais ao governo serão julgados em Al-Baida

Na cidade de Al-Baida, na Cirenaica, os insurgentes capturaram entre 300 e 350 soldados de Kadafi na terça-feira, informa o Wall Street Journal. Muitos dos moradores locais, apoiados por soldados amotinados, sitiaram durante dias o aeroporto onde os combatentes leais a Kadafi haviam se entrincheirado. Durante uma negociação para a rendição dos partidários de Kadafi, um xeque que negociava a rendição dos governistas foi morto em um episódio confuso. A luta foi retomada e o aeroporto caiu na terça-feira.

Um dos moradores de Al-Baida, Fadhil al-Hadouthi, disse que todos os soldados leais a Kadafi e os mercenários serão julgados sumariamente. “Nós esperamos que eles sejam executados”, afirmou o morador, um desempregado de 38 anos que ajudou os insurgentes na coordenação de abastecimento de remédios e alimentos.

Os combates em Al-Baida, que começaram nos primeiros dias de rebelião contra Kadafi, foram descritos por várias testemunhas. “Eles atiraram em todos os civis desarmados que estiveram ao alcance”, disse Mohammad Abduh, um egípcio que vive e trabalha em Al-Baida. Os moradores afirmam que, além de sitiados no aeroporto, as forças enviadas por Kadafi tentaram escapar em jipes, mas foram atacadas a tiros na rodovia. Muitos morreram no local e os restantes fugiram de volta ao aeroporto.

Ontem, um piloto de jatos de combate líbio desobedeceu às ordens de bombardear a cidade de Benghazi, onde há forte presença de opositores ao governo de Kadafi. Ele e o copiloto de ejetaram da aeronave, deixando que ela caísse, informou o site do jornal líbio Quryna. O Sukkhoi 22, de fabricação russa, caiu perto de Ajdabiya, 160 quilômetros a oeste de Benghazi, que foi dominada pelos opositores de Kadafi, segundo uma fonte militar citada pelo jornal.

“O piloto Abdessalam Attiyah al-Abdali e o copiloto Ali Omar al-Gadhafi se ejetaram, usando seus paraquedas, após se recusarem a cumprir as ordens de bombardear a cidade de Benghazi.”

Brasileiros

A construtora Odebrecht conseguiu autorização para pousar aviões fretados na Líbia e resgatar 3,2 mil funcionários que estão no país. A companhia fretou dois Boeing 747 que, até o fim da tarde de ontem, aguardavam para entrar no espaço aéreo líbio. Desde sexta-feira, 1,8 mil funcionários da empresa deixaram o país em voos de carreira. A intenção é levar os trabalhadores até Malta. Muitos operários que trabalham nas obras da Odebrecht na Líbia vieram da Tailândia, Vietnã, Filipinas e Egito. Os executivos são do Brasil e outros países da América Latina.

Kadafi deverá sobreviver mesmo com o país dividido 

Cairo (AE) - Muamar Kadafi jamais confiou em seu próprio exército. Por isso, o homem que lidera a Líbia há 41 anos manteve enfraquecidas as forças armadas do país para evitar qualquer desafio sério ao seu regime. Com dinheiro e clientelismo, ele instalou pessoas fiéis em postos-chave, equipou milícias e armou “comitês revolucionários” que representam o último reduto de apoio a ele e aos seus poderosos filhos. São estas as forças que devem lutar por ele se o exército regular decidir se voltar contra o governo. É por isso que ele conserva o controle sobre a capital, Trípoli, enquanto grandes partes do vasto território desértico fora da capital caem rapidamente nas mãos dos manifestantes contrários ao governo.

Este é também o motivo pelo qual o levante na Líbia não seguirá o mesmo rumo das revoltas no Egito e na Tunísia, países onde um exército organizado e disciplinado interveio, afastando os líderes autoritários e poupando a população de uma situação de caos ainda maior.

Os levantes no Egito e na Tunísia - que fazem fronteira com a Líbia no leste e no oeste do país, respectivamente - levaram a uma deposição dos líderes questionados num prazo relativamente curto. A situação na Líbia, por outro lado, já se mostra mais complicada e mortífera.

Com Kadafi respondendo com força total e metade do território fora do controle do governo, este país norte-africano pode se fragmentar ou mergulhar numa sangrenta guerra civil. A Líbia - país deserto cuja esparsa população de 6 milhões de habitantes se concentra na porosa costa do Mediterrâneo - apresenta muitas fissuras.

O sistema tribal de lealdade é forte e pode decidir o destino do regime. Kadafi passou muitos de seus anos no governo consolidando o poder em torno de si. Assim, além de enfraquecer o exército e fortalecer as milícias locais, ele usou as amplas reservas de petróleo e gás do país para cooptar as tribos, concedendo-lhes dinheiro, privilégios e cargos de importância, e incentivando alianças de sangue por meio de casamentos entre as tribos.

Kadafi privou seu povo de direitos básicos, reprimiu com mão de ferro todas as manifestações de dissidência e desperdiçou a riqueza da Líbia em países e tribos de toda a África subsaariana. Há tanta raiva acumulada no coração dos líbios que é grande a probabilidade de a queda de Kadafi abrir caminho para uma arrebatadora onda de júbilo e caos, alívio e anarquia.

Até o momento, o uso de força excessiva por parte de Kadafi o ajudou a manter o controle sobre Trípoli, mas a perda da região oriental da Líbia - rica em petróleo e nas mãos dos manifestantes desde o começo da semana - poderia levar a um impasse duradouro.

O professor George Joffe, especialista em Líbia que leciona na Universidade de Cambridge, acredita que Kadafi disponha de força militar suficiente para seguir lutando, com uma força estimada em 120 mil homens que inclui milícias fortemente armadas e muito leais a ele, as quais seriam muito prejudicadas com a queda de seu regime. “Enquanto suas forças não forem afetadas por deserções, Kadafi pode resistir por quanto tempo quiser”, disse ele, destacando os Comitês Revolucionários de Kadafi como uma de suas milícias mais poderosas. (Hamza Hendawi, da Associated Press)

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